Mundo Surreal

sábado, 7 de setembro de 2019

La Flaca

- Si cierra los ojos te robo otro beso.
- Los mantengo abiertos.

Um dia comum

Olhou-se ao espelho e o que viu o deixou estarrecido: quando foi que deixou de ser quem era? O tempo lhe marcara seus padrões místicos na face ao redor dos olhos e estes, tão opacos que não fossem dele juraria que pertenciam a um defunto. Toda a alegria lhe fora roubada, mas por quem? Pela sua profissão, que tanto almejara conseguir? Agora tinha muito mais coisas que jamais tivera, agora dinheiro pela primeira vez não era um problema, agora esposa e filhos ali estavam ao seu lado. Pensou na resposta por alguns instantes, sem conseguir chegar a qualquer conclusão. Fez uma concha com as mãos, sustentou o que podia da água da torneira e a atirou no rosto. Um lapso de vigor lhe percorreu o espírito e uma velha lembrança lhe enganchou na mente. Uma lembrança tão velha e empoeirada que visivelmente não era usada há um bom tempo, e lhe faltavam partes cruciais para um entendimento completo. Viu-se muito mais jovem, em um tempo de preocupações limitadas pelas esquinas fisiológicas de seu próprio corpo, e sua mãe, muito bela - não se lembrava absolutamente da imagem de sua mãe, mas sabia que deveria ser muito bela - abandonar um serviço de casa qualquer para lhe entregar um brinquedo tosco e barato. Essa lembrando lhe deixou a mente ao mesmo tempo que a toalha lhe deixou o rosto e percebeu que estava enxugando não apenas a água, mas também uma lágrima sorrateira e dissonante da face de um homem adulto. Sacudiu a cabeça e não pensou mais nisso, apenas saiu direto para mais um dia de trabalho, consciente de que sim, seu próprio olhar no espelho não havia se enganado; pertencia a um defunto.

Patagonia


O cansaço dentro da mochila, presente, constante, pesado. As botas se moviam com dificuldade, carregando nossos pés, enquanto estes produziam bolhas com uma eficiência espantosa. O vento cortava nossas bochechas com a mesma ferocidade de cortamos nossa única fatia de pão naquela manhã gelada. As pedras eram projéteis contra nossos corpos enfraquecidos, atiradas pela própria mãe natureza em carne e osso, materializada ali em cada arbusto e em cada montanha a nossa volta. E juntos caminhamos pelo caminho do mundo todo, o caminho dos fortes e persistentes, o caminho do pó, do gelo, da grama, das folhas, dos espinhos, dos rios e dos glaciares. Pelo caminho da vida, pois a única maneira de viver é caminhando. E caminhando pelas trilhas do desconhecido, das manhãs frias, dos pedaços de pão seco, pelas porções limitadas de macarrão com molho de tomate, das esperas intermináveis, pelas vitórias sobre si mesmo, por todas essas caminhadas é que chegamos até o topo das mais altas montanhas para contemplar os mais belos lagos. E o cansaço da mochila dá lugar ao grato peso da uma garrafa d'água colhida junto à neve e deliciado junto aos olhos da melhor companhia. E as bolhas, as pedras e finalmente o cansaço serão agradecidos infinitamente por existirem e compor esse momento sublime.

Anestesia

Tudo é dor, sofrimento, angústia.
10 segundos e...
Acorda agitada.
Doutor, tenho medo da operação!
Já acabou, senhora.
Acabou?!
Acabou.
Doutor, me dá esse remédio pra mim levar pra casa!
Senhora, esse remédio não pode dar nem vender pra gente levar pra casa. Imagina a senhora a tentação, tudo dando errado, a culpa constantemente presente, a senhora perdida numa noite qualquer, sem sono, sem vontade de continuar, e aí tem ao alcance esse remédio pra absolutamente tudo. E aí...
Entendi, doutor. Melhor deixa, né.

terça-feira, 13 de março de 2018

5 minutos

Sexta-feira, 18h53.
Estaciono longe, não têm muitas vagas. Uma ambulância passa por mim enquanto me dirijo ao PA. Entro aproveitando a passagem deixada por um rapaz que abre a porta e sai, com um dedo de luva no nariz e muito sangue na camiseta. Conheço o porteiro. Pego a chave e abro a porta por onde entram as macas trazidas pelo SAMU. Reparo que agora a porta não fecha direito e lembro que semana passada um acompanhante enlouquecido com a demora pelo atendimento jogou uma pedra na porta. Fecho do jeito que dá e, ao virar, me deparo com três macas do corredor em que os pacientes aguardam atendimento. Duas das pessoas que esperam nas macas estão com colar cervical e completamente imobilizadas. Uma delas dorme enquanto a outra, um senhor de cerca de 60 anos, grita algo incompreensível. Nas cadeiras estão mais quatro pessoas: uma criança que brinca com o nariz da mãe, esta tentando desviar a atenção da garota do corte no queixo que certamente ocasionará um belo escândalo em alguns minutos; um homem com a mão enfaixada e muito suja de graxa e sangue, que tem o olhar fixo no vazio e parece não ouvir a moça ao seu lado falar muito alto ao celular para suplantar os gritos do senhor na maca. Desvio das macas e empurro a porta que dá para o consultório, bem a tempo de desviar de um interno que pega no armário materiais para sutura. Cumprimento-o e ele acena de volta, como quem acena para um resgate. Acho graça. Passo por um homem com um olho muito vermelho, que me olha e certamente reza para que eu seja o oftalmologista que ele aguarda há mais de duas horas. Não sou. Saio para o corredor central do PA, onde estão dispostas macas em ambos os lados, margeando uma pequena passagem pela qual enfermeiras se espremem e distribuem medicações. Passo por uma enfermeira que olha, muito intrigada, uma prescrição e em seguida a abandona e grita o nome de um medicamento para a janela da farmácia, onde ninguém a escuta, pois a farmacêutica está ocupada atendendo a janela da emergência, na qual uma jovem médica solicita, histérica, ampolas e materiais. Mais afrente me detenho diante de uma mulher em uma cadeira de rodas, com a perna engessada, que olha com cara de nojo um paciente que acaba de vomitar algo bem escuro no quarto ao lado. Peço licença, ela repara minha existência e desajeitadamente sai do caminho. Entro na sala dos médicos, ontem quatro plantonistas conversam e assistem TV. Pego meu uniforme e vou para meu plantão. Já se passaram 5 minutos.